Assédio moral e a tutela da honra do servidor: definições da transgressão, formas de coibição e uma breve reflexão sobre eventual tipificação penal

Notícias
“A injustiça que se faz a um é uma ameaça que se faz a todos” (Barão de Montesquieu)
Leonardo de Vargas Marques*

No ano de 2014, a Controladoria-Geral da União (CGU) começou a catalogar casos de assédio moral e sexual no âmbito do Poder Executivo federal. Naquele ano, 91 processos apuratórios foram registrados e dois servidores foram demitidos.

Ao final de 2018, conforme matéria de edição online do jornal “O Globo”, divulgada em 23 de dezembro de 2018, houve 185 processos de apuração relacionados a assédio, que reverberaram na demissão de nove servidores.

Diante de tais dados, caberia o questionamento inicial: estão aumentando os casos de assédio no âmbito do serviço público federal ou está sendo reforçada a ação repressiva do Estado sobre tal prática?

A resposta a essa pergunta transcenderia a seara jurídica, estando mais afeta a discussões sociológicas. Assim, a proposta deste artigo é apresentar definições da transgressão, formas de coibição e uma breve reflexão sobre eventual tipificação penal.

Definição de assédio moral

O assédio moral não consta tipificado em dispositivo legal no ordenamento jurídico-penal brasileiro.

Assim, à luz do princípio nulla poena, sine legis, consagrado no art. 5º inciso XXXIX da Constituição Federal, seria descabido se falar em crime. Não obstante, assédio sexual foi inserido no Código Penal brasileiro pela Lei nº 10.224, de 15 de maio de 2001. Consta in verbis do art. 216-A:

“Constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente da sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função.”

A pena poderá, ainda, ser aumentada em até um terço se a vítima for menor de 18 anos. Mas se for a vítima menor de 14 anos, não há que se falar em assédio sexual com pena aumentada, pois incorrer-se-á no delito de estupro de vulnerável.

Também era intuito do legislador que se incorresse na mesma pena aquele que houvesse cometido o crime prevalecendo-se de relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade, bem como com abuso ou violação de dever funcional. Porém, tendo ouvido manifestação do Ministério da Justiça, o Presidente da República optou por vedar dispositivo que descrevia a situação retrorreferida.

Percebeu-se que o texto proposto pelo legislador afastaria as situações de aumento de pena já previstas no art. 226[1], e, dessa forma, desconsiderar-se-ia a maior gravidade daquele delito, se praticado por agente que se aproveitasse de relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade.

Sobre assédio moral, especificamente, as melhores definições constam da jurisprudência, de parquíssimos textos legais e da doutrina. No estado de São Paulo, a Lei Ordinária nº 12.250, de 09 de fevereiro de 2006, institui a vedação de assédio moral no âmbito da administração pública estadual direta, indireta e fundações públicas. O art. 2º do supracitado normativo assim define a prática:

“Considera-se assédio moral para os fins da presente lei, toda ação, gesto ou palavra, praticada de forma repetitiva por agente, servidor, empregado, ou qualquer pessoa que, abusando da autoridade que lhe confere suas funções, tenha por objetivo ou efeito atingir a auto-estima e a autodeterminação do servidor, com danos ao ambiente de trabalho, ao serviço prestado ao público e ao próprio usuário, bem como à evolução, à carreira e à estabilidade funcionais do servidor (…). (SÃO PAULO, Assembleia Legislativa, Lei 12.250, de 9 de fevereiro de 2006)

A jurisprudência, essencialmente da Justiça Trabalhista, tem classificado o assédio o moral como prática repetitiva com a finalidade de marginalização do empregado e de redução psicológica. Nesse sentido, cabe citar precedente exarado pelo Egrégio decisão de relatoria do Tribunal Regional do Trabalho – 2ª Região, in verbis:

“O assédio moral é uma das espécies do dano moral e tem pressupostos muito específicos, tais como: conduta rigorosa reiterada e pessoal, diretamente em relação ao empregado; palavras, gestos e escritos que ameaçam, por sua repetição, a integridade física ou psíquica; o empregado sofre violência psicológica extrema, de forma habitual por um período prolongado com a finalidade de desestabilizá-lo emocionalmente e profissionalmente. É fundamental que haja a intenção de desestabilizar o empregado vitimado, minando sua confiança produtiva, com a intenção de excluí-lo do ambiente de trabalho, marginalizando-o e debilitando gravemente seu potencial de trabalho” (Acórdão nº: 20160520082 – Relator: Donizete Vieira da Silva – Publicação: 25-07-2016).

Entre as definições doutrinárias, uma das mais aceitas é a da Professora Marie France Hirigoyen (2002), como aquela conduta abusiva que pode expressar-se em forma de gesto, palavra, comportamento ou outra atitude, cuja sua repetição ou sistematização atente contra a dignidade ou integridade psíquica ou física de outrem, ameaçando-lhe o emprego ou degradando o clima de trabalho.

Não obstante a inexistência de Lei Federal que classifique a famigerada conduta, o Código Civil brasileiro, Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002, define o que seria dano moral. Este, semelhantemente ao assédio, ocorreria em situações nas quais o polo passivo se sente afetado em seu ânimo psíquico, moral e intelectual, por acometimento à sua honra, à sua privacidade, à sua intimidade, à sua imagem, ao seu nome ou em seu próprio corpo físico. De acordo com o art. 186 do Código Civil, “Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”.

Complementarmente, o art. 187 do Código Civil define que comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes. Além disso, ao dispor sobre responsabilidade civil e obrigação de indenizar, o Código Civil pátrio define que:

Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.

Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.

Percebe-se a intenção do legislador de preservar a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, bem como de garantir meios que permitam a reparação de danos psicológicos à imagem e à honra da vítima.

Assédio moral e condutas tipificadas penalmente

A despeito da inexistência de tipificação do assédio moral no Código Penal vigente, o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940, a conduta praticada poderá configurar crime contra a honra, e, em situações extremas, os crimes de ameaça ou constrangimento ilegal.

A calúnia ocorre no caso de o assediador acusar o assediado da prática de crime não cometido, conforme artigo 138 do Decreto-Lei nº 2.848/1940. A pena será de detenção de seis meses a dois anos, e multa. Também incorrerá na pena aquele que, mesmo sabendo falsa a imputação, a propala (verbalmente) ou divulga (escrito).

Se o assediador ofender publicamente a honra da vítima, imputando-lhe algo desonroso efetivamente ofensivo a sua reputação, mesmo que não constitua crime, incorrer-se-á em difamação, nos termos do artigo 139, punível com detenção de três meses a um ano e multa.

Entre as condutas classificadas como crimes contra a honra, poderá configurar-se injúria quando o assediador dirige ao assediado algo desonroso e que ofende a sua dignidade, comumente denominado xingamento. Trata-se de crime em que o dano é a honra subjetiva, não havendo necessidade de que terceiros tomem conhecimento da ofensa para a sua configuração.

Os crimes contra a honra se processam mediante ação penal privada, cujo titular será o ofendido, em regra. Não obstante, caso o referido não seja capaz, tomará a iniciativa de queixa o seu tutor ou curador. Em caso de ofendido falecido ou declarado ausente poderão fazê-lo o cônjuge, ascendente, descendente ou irmãos.

Os arts. 146 e 147, respectivamente, definem os crimes de constrangimento ilegal e ameaça, ambos tipificados entre aqueles que atentam contra a liberdade pessoal. Conforme o art. 146 do Código Penal, configura o crime de constrangimento ilegal: “Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, ou depois de lhe haver reduzido, por qualquer outro meio, a capacidade de resistência, a não fazer o que a lei permite, ou a fazer o que ela não manda.”

O delito será punível com detenção, de três meses a um ano, ou multa, sendo possível a aplicação das penas cumulativamente e em dobro caso tenha ocorrido a reunião de três pessoas ou mais para execução do crime ou o emprego de armas.

No que se refere à seara processual, trata-se de ação penal pública incondicionada, ou seja, independentemente de representação o Ministério Público poderá oferecer a denúncia da vítima para que se inicie a persecutio criminis.

Assim, pode-se dizer de forma simplificada que o Parquet estará autorizado a ofecerer denúncia ao Poder Judiciário, ainda que não haja a formalização de queixa do sujeito passivo perante autoridade policial.

Já o crime tipificado no art. 147 está assim definido: “Ameaçar alguém por palavra, escrito ou gesto, ou qualquer outro meio simbólico, de causar-lhe mal injusto e grave.” Diferentemente, o crime tipificado no art. 147 do Estatuto Repressivo, conforme seu parágrafo único, somente se procede mediante representação. O apenamento será de detenção, de um a seis meses, ou multa.

Conclui-se que, apesar de assédio moral não constar do rol de crimes elencados no Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940, trata-se de conduta antijurídica e o ordenamento jurídico pátrio garante a tutela dos bens jurídicos e dos valores éticos afetados, nas esferas cível e criminal.

Propostas legislativas de tipificação como crime e o caráter subsidiário do Direito Penal

Em 12 de março deste ano, o Projeto de Lei (PL) 4742/2001 teve sua redação final aprovada pela Câmara do Deputados. Trata-se de proposição com vistas a inserir o art. 146-A no Código Penal Brasileiro, dispondo sobre o crime de assédio moral no trabalho. Atualmente, o PL tramita no Senado, para onde foi remetido na forma do Ofício nº 141/2019/SGM-P.

Pela redação final aprovada, pretende-se assim tipificar assédio moral:

Art. 146-A. Ofender reiteradamente a dignidade de alguém causando-lhe dano ou sofrimento físico ou mental, no exercício de emprego, cargo ou função.

Pena – detenção, de 1 (um) a 2 (dois) anos, e multa, além da pena correspondente à violência.

§ 1º Somente se procede mediante representação, que será irretratável.

§ 2º A pena é aumentada em até 1/3 (um terço) se a vítima é menor de 18 (dezoito) anos.

§ 3º Na ocorrência de transação penal, esta deverá ter caráter pedagógico e conscientizador contra o assédio moral.”

Indiscutivelmente, os bens jurídicos da liberdade, da honra, da não-discriminação negativa e o fundamento da dignidade da pessoa devem receber a tutela jurisdicional. Porém, de antemão, semelhantemente ao tipo penal de assédio sexual, já existente, percebe-se que o tipo assédio moral pode facilmente subsumir diante de infrações contra a honra, e outras também já existentes como ameaça e constrangimento ilegal.

Inevitável, também, seria não constatar colisão com o princípio da subsidiariedade (ultima ratio) e do ne bis in idem do Direito Penal.

Em relação a este último, observa-se possível dissonância a partir da redação final aprovada pela Câmara dos Deputados, ao se permitir que o autor sofra, além do apenamento de detenção de até dois anos e multa, o correspondente à violência.

 

[1] Aumento de pena

Art. 226. A pena é aumentada

I – de quarta parte, se o crime é cometido com o concurso de 2 (duas) ou mais pessoas;

II – de metade, se o agente é ascendente, padrasto ou madrasta, tio, irmão, cônjuge, companheiro, tutor, curador, preceptor ou empregador da vítima ou por qualquer outro título tiver autoridade sobre ela;

IV – de 1/3 (um terço) a 2/3 (dois terços), se o crime é praticado:

Estupro coletivo

a) mediante concurso de 2 (dois) ou mais agentes;
Estupro corretivo

b) para controlar o comportamento social ou sexual da vítima.

 

* LEONARDO DE VARGAS MARQUES – Servidor Público Federal, integrante de carreira de gestão da Secretaria Especial de Fazenda do Ministério da Economia, em exercício na função de Coordenador no Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos (MMFDH).
Bibliografia
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988.
BRASIL. Decreto-lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Institui o Código Penal. Disponível em:< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm>. Acesso em: 12 de outubro de 2019.
BRASIL. Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990. Dispõe sobre o regime jurídico dos servidores públicos civis da União, das autarquias e das fundações públicas federais. Disponível em:< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8112cons.htm>. Acesso em: 12 de outubro de 2019.
BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível em:< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/2002/L10406.htm>. Acesso em: 12 de outubro de 2019.
CÂMARA DOS DEPUTADOS. Disponível em: <https://www.camara.leg.br/>. Acesso em: 12 de outubro de 2019.
CUNHA, Rogério Sanches. Manual de direito penal. 11. ed. Salvador: JusPodivm, 2019. 1056 p.
HIRIGOYEN, Marie-France. Assédio Moral – A violência perversa no cotidiano. 2002. 213 p.
MEGALE, BELA. Casos de assédio sexual e moral no governo federal batem recorde em 2018. O Globo. Disponível em:<https://oglobo.globo.com/brasil/casos-de-assedio-sexual-moral-no-governo-federal-batem-recorde-em-2018-23324091>. Acesso em: 12 de outubro de 2019.
SENADO FEDERAL. Disponível em: <https://www12.senado.leg.br/>. Acesso em: 12 de outubro de 2019.
  • Com informações do Jota Info. Foto: Pixabay